Memórias de uma Guerra Suja


Memórias de uma Guerra Suja


O livro “Memórias de uma Guerra Suja”, como o nome informa, narra o envolvimento de Cláudio Guerra, delegado da polícia civil do DOPS do estado do Espírito Santo, nas equipes de “guerra clandestina” da ditadura militar contra a militância de esquerda que havia se levantado contra o regime, bem como contra os militantes, que não haviam pego em armas contra o regime, do PCB, o Partido Comunista Brasileiro.


Segundo seu depoimento, Cláudio Guerra teria participado de uma equipe de CODI-DOI, e era encarregado de liquidar, isto é, assassinar presos políticos que tivessem ficado muito debilitados em sessões de tortura que essas equipes promoviam, bem como de cuidar da ocultação de cadáveres de presos políticos do regime. Não era um torturador, era um matador.


O livro é interessante pois parece que se trata do primeiro depoimento de um agente do estado que afirma sem meias palavras que matou e tratou de fazer sumir corpos de presos políticos. Segundo ele, o que o levou a assumir essas atividades foi um profundo anti-comunismo, nutrido desde muito jovem. E o que o levou a dar o depoimento foi uma conversão religiosa. O ex-delegado Cláudio Guerra se tornou cristão evangélico, tendo inclusive se tornado pastor, e quer fazer uma espécie de ajuste de contas de seu passado. O livro abre inclusive com uma citação bíblica do Novo Testamento: II Timóteo 4:7-8.


Não é uma leitura fácil, afinal logo no início do livro o Sr. Cláudio Guerra narra uns oito assassinatos que ele mesmo executou, mais uns outros tantos dos quais não participou, mas teve conhecimento que foram executados por colegas de equipe.


Narra sua participação na destruição dos corpos de dez militantes do PCB que haviam sido presos, torturados e assassinados pela equipe de que fazia parte. Segundo ele, os militantes foram torturados e assassinados numa casa em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, e de lá os corpos foram levados para uma usina de cana no município de Campos no mesmo estado, onde foram consumidos num forno.


Além disso, Guerra situa quatro supostos cemitérios clandestinos. Nomeia um agente da CIA com quem tinha contatos e que lhe fornecia armas, chamado Jone Romaguera Trotte. Nomeia seus superiores, o coronel Freddie Perdigão, já falecido, o comandante Antônio Vieira, oficial da Marinha. Cita outro oficial que atuava na casa em Petrópolis, coronel Paulo Manhães, que inclusive já deu entrevista ao jornal O Globo, depois da publicação deste livro. Conta sua participação em um atentado contra o jornal O Estado de São Paulo. Oferece uma versão para o assassinato do jornalista Alexandre Baumgarten e de sua esposa. Também oferece uma versão para o atentado ao show no Riocentro em 1981.


E também mostra, como essa equipe montada para assassinar subversivos acabou se associando à contravenção, isto é, às pessoas ligadas ao jogo do bicho, no Rio de Janeiro, em São Paulo, e no Espírito Santo, e acabaram derivando para a criminalidade comum, digamos assim, principalmente assassinatos sob encomenda, ou “crime de mando” como o chama Guerra.


O livro tem seus pontos fracos. Basicamente tudo é baseado na memória de Cláudio Guerra. Os repórteres fizeram uma certa pesquisa de confrontar as citações de Guerra, com as listas de desaparecidos e mortos pelo regime, e assim dão nomes a algumas vítimas de Cláudio Guerra, que ele sabia que havia matado, mas que não sabia quem eram. Mas muita coisa fica no ar. Tal dificuldade se deveu à pressa para concluir o livro e publicá-lo, pois à medida em que o livro começou a tomar forma, começaram a aparecer também as ameaças a Cláudio Guerra.
No final do livro, Netto e Medeiros reproduzem uma monografia do coronel Freddie Perdigão, supostamente apresentada à Escola de comando do Estado Maior do Exército, cujo título é “O Destacamento de Operações de Informações (DOI) no EB - Histórico papel no combate à subversão: situação atual e perspectivas”. Esse “EB” no título obviamente significa “Exército Brasileiro”. A obra é basicamente uma justificativa teórica e um manual de instruções para os CODI-DOI’s, ou DOI-CODI’s como são mais chamados pela imprensa brasileira. CODI siginifica “Centro de Operações de Defesa Interna”; DOI, como explicitado acima, “Destacamento de Operações Internas”. Ou seja, uma justificativa teórica e um manual de funcionamento dos centros de tortura do regime.


Este é um pequeno resumo do livro. Bastante coisa ficou de fora. Até porque, como já foi dito,  não é uma leitura agradável.


Este livro é importante porque parece que é a primeira vez que um agente sai das sombras para dizer que “eu assassinei pessoas em nome do regime, eu desapareci com cadáveres em nome do regime”, em contraponto aos livros que racionalizam a ditadura desde os seus estertores no início dos anos 1980. Livros como “Brasil Sempre” (em contraponto a “Brasil Nunca Mais”, um livro que denunciava as torturas no regime militar), ou “A Verdade Sufocada”, livro do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que tenta desqualificar as denúncias de tortura no período em que ele dirigiu um CODI-DOI. Estes livros justificam o regime, e nunca admitem as torturas e os assassinatos executados em seus porões. O livro de Guerra acaba com isso. Sim, se assassinou e se torturou em nome do regime. Guerra foi um dos agentes que fez isso e confessa neste livro.


GUERRA, Cláudio; NETTO, Marcelo; MEDEIROS, Rogério. Memórias de uma Guerra Suja, Cláudio Guerra em depoimento a Marcelo Netto e Rogério Medeiros. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.


02/07/2012.

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