Dois excelentes textos na Piauí de setembro de 2012


Dois excelentes textos na Piauí de setembro de 2012

A revista Piauí é uma publicação mensal que costuma publicar longos textos, sejam memórias de alguém, sejam reportagens, seja algum ensaio, ou mesmo resenhas um pouco mais longa de algum livro recém lançado, ou a ser lançado.


Na edição de setembro de 2012, há diversos textos bons, como a chamada “A Ressaca do Pré-sal”, onde Consuelo Dieguez fala sobre os porquês da exploração petrolífera da camada do pré-sal na costa brasileira não ter alcançado o potencial esperado dela quando de sua descoberta. Ou a análise de Mário Sérgio Conti sobre o livro “Os Sentidos do Lulismo” de André Singer.


Mas há dois textos que achei excelentes. Um se chama “Nem vivos nem mortos”, sobre a experiência de uma adolescente judia-iugoslava em Auschwitz. O outro se chama “O comandante ianque”, e fala de um norte-americano que liderou uma frente de guerrilha da Revolução Cubana, no final dos anos 1950.

Nem vivos, nem mortos

“Nem vivos nem mortos” é a redação mais ou menos final, das memórias de Liwia Jaffe, compiladas por sua filha Noemi Jaffe. Um livro, chamado “O que os Cegos Estão Sonhando?”,  desenvolvendo mais o assunto está prometido para este mês de outubro.


O texto, em forma de diário, lembra desde o desterro involuntário da família Jaffe de uma aldeia da Vojvodina, antiga Iugoslávia, quando da ocupação nazista até o final da guerra, e a libertação de Liwia.


As memórias parecem vívidas: A ocupação da aldeia, em abril de 1944, um pouco mais de um ano antes do final da guerra na Europa. A expulsão do lar. A travessia forçada para o território ocupado da Hungria. O envio de trem para Auschwitz. A chegada ao campo de concentração e extermínio. A separação da família no campo. O sumiço da mãe. O corte dos cabelos e o recebimento de roupas de tamanho errado. A reunião com primas e seu envio para trabalhar num refeitório do campo. A luta diária para conseguir a comida necessária a mais um dia de sobrevivência. A constante ameaça de espancamentos e castigos. As constantes recontagens dos prisioneiros. A fome. O medo.
Mas ela, e suas primas conseguiram sobreviver. A guerra terminou. E, novamente de trem, elas foram enviadas de Auschwitz para a Alemanha, e de lá para a Dinamarca, onde foram bem recebidas, saudadas calorosamente segundo estas memórias. Da Dinamarca para a Suécia onde foram instaladas,em quarentena, para sua recuperação.   


A matéria é ilustrada com uma foto de uma jovem, sorridente, e aparentemente muito bem, já de volta à Iugoslávia, em 1946.


Não nos é informado, ou eu me esqueci, como Liwia Jaffe veio parar no Brasil, e aqui acabou por formar família. E ela talvez venha a conhecer a terceira geração de sua descendência. No momento em que a matéria foi publicada, Liwia Jaffe contava com 85 anos.


Dos relatos que li ou ouvi sobre o holocausto, este foi o que mais me comoveu.

Um gringo na guerrilha

O outro texto, “O Comandante Ianque”, é um longo perfil de William Alexander Morgan, reproduzido de texto publicado na New Yorker, escrito por David Grann.


E o perfil começa pelo final. Isto é, começa pela execução de William Morgan por um pelotão de fuzilamento, na prisão de La Cabaña, em Havana, no início de 1961.


Começando por aí, Grann traça o perfil do enigmático Morgan, o homem que comandou uma frente guerrilheira nas montanhas de Escambray, em Cuba. Um segundo foco guerrilheiro, então, em 1957, mais ou menos independente da guerrilha comandada por Fidel, Che e Raúl em Sierra Maestra.


Morgan foi um filho da classe média americana do meio-oeste. Mas segundo o perfil sempre foi meio desajustado. Fugiu de casa no final da adolescência, e se alistou no exército. Nesse meio tempo teve um casamento relâmpago, mas logo se separou. Foi enviado pelo exército para o Japão, onde acabou por se envolver com uma mulher japonesa, teve com ela um filho e desertou. Acabou preso, e cumpriu alguns anos de sentença em prisão federal.


Por conta dos registros policiais, e por seu perfil, digamos, rebelde, acabou se envolvendo em negócios com o crime organizado.


E por meio do crime organizado, acabou chegando em Cuba.


Em Cuba tomou-se de simpatia pela guerrilha, e resolveu aderir. Naqueles anos finais da década de 1950, a guerrilha ainda não se declarara comunista ou socialista. A princípio seu objetivo era derrubar o regime de Fulgêncio Batista, um tirano como vários outros da América Central e Caribe daqueles dias. E como já vimos, Morgan acabou somando-se ao então pequeno grupo guerrilheiro que se formava em Escambray.


Ali ele ajudou a estruturar melhor o grupo, ensinou táticas de combate, e aprendeu a falar espanhol. Esta guerrilha ajudou a derrubar o regime de Batista. Mas não sem antes um certo desentendimento entre a liderança de Escambray, e Che guevara que havia ido à região para sondar o grupo.


Ao mesmo tempo, as notícias de um norte-americano entre as lideranças da guerrilha em Cuba, fez soar alarmes nos Estados Unidos. FBI e CIA começaram a investigar a vida desse cidadão estadunidense que lutava no Caribe. Boa parte do perfil traçado por Grann certamente é devedor dos dossiês montados a respeito de Morgan, feitos por estas agências.


Mas Morgan era um liberal, em uma revolução que estava se encaminhando para o socialismo. Socialismo tal qual entendido naquela época, tendo a União Soviética, a Iugoslávia, a China, como modelos, com a progressiva extinção da propriedade privada e a instalação da chamada ditadura do proletariado.


Uma vez vitoriosa a revolução na ilha, Morgan ainda ajudou a desmontar uma das primeiras tentativas de contrarrevolução e assassinato de Fidel, articulados pelas primeiras levas de exilados cubanos, com a ajuda da República Dominicana, do ditador Rafael Trujillo.  


Morgan a princípio se instalou em Cuba. Casou, teve filhas. Organizou criações de rãs, que acabaram por prosperar.


Mas Morgan era um liberal, em uma revolução que estava se encaminhando para o socialismo. Depois de expulsar comunistas que queriam se reunir na sede da fazenda de criação de rãs, acabou por ser preso. Por ser contra o comunismo, acabou condenado como “traidor e contrarrevolucionário”. E, por fim, acabou fuzilado em la Cabaña. Tinha 32 anos.


Depois de cumprir pena também na ilha. Sua viúva se exilou nos Estados Unidos, onde veio a conhecer os parentes de seu falecido marido. Desde então, ela lutou junto ao governo norte-americano pela reabilitação do falecido marido (sua cidadania havia sido cassada, por conta do envolvimento com a guerrilha em Cuba), e pelo traslado dos restos mortais dele para os Estados Unidos (o que faz todo sentido, uma vez que ele foi condenado por traição em Cuba). Mas o regime cubano tem, segundo o perfil, mesquinhamente se negado a permitir isso, embora em 2002 Fidel Castro tenha dito que não impediria tal traslado.


Boa parte dos membros da guerrilha de Escambray foi presa e torturada. Parte dos guerrilheiros acabou por deixar o país.


Muitas vezes, uma revolução começa com idealismo, e termina com paranoia. “Devorando” seus filhos.


Era isso. A revista Piauí de setembro de 2012 tem outros textos bons. Mas só estes já valeriam a pena.




08/10/2012.


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