No intervalo do almoço


No intervalo do almoço


- Almoço? - perguntou um.
- Almoço? - respondeu outro.
- Almoço! - respondeu um terceiro.
Normalmente era assim. Quando se aproximava da hora do almoço eles se aproximavam uns dos outros, como se a fome diária os unisse. Trabalhavam numa autarquia no Centro Histórico de Porto Alegre. Antigamente nem se dizia Centro Histórico, bastava dizer que trabalhava na Rua da Praia, que já ficava implícita a referência ao centro da cidade, que no caso de Porto Alegre, fica num ponta, motivo pelo qual Porto Alegre não tem zona oeste.
A autarquia é um dos tantos lugares nos quais as ordens do Governador, expressas ao Secretário, acabam se transformando em algo que vai afetar aos cidadãos. Assim, esses homens se sentiam cheios de responsabilidades junto à cidadania, mas por outro lado se sentiam aliviados por trabalharem em áreas de suporte. Áreas meio, onde não tinham que encarar o respeitável público de frente.
Carlo era algo como um administrador da rede da seção da autarquia em que trabalhavam. Mateus era o homem que tratava dos diversos softwares com os quais eles trabalhavam, de forma que Carlo e Mateus tinham que tentar se entender, ou, ao menos, tentar evitar atritos um com o outro. Voltaire era um sub-chefe da seção, e os dois Joões era assistentes administrativos. Por conta do que achavam ser um concorrido mercado de trabalho no sul do Brasil, todos eles tinham educação superior. Carlo e Mateus eram formados em Análise de Sistemas, um numa universidade pública, outro numa universidade privada. Voltaire e um dos Joões eram formados em Administração de Empresas, e o outro João, bem, João era formado em Letras. Mas, bem ou mal, todos eles conseguiram passar pelo concorrido concurso para fazerem parte do quadro de funcionários da autarquia em que eles trabalhavam.
Assim, de segunda a sexta eles se esforçavam para que a rede mais ou menos obsoleta funcionasse adequadamente, os processos andassem, e as informações fossem tabuladas corretamente, de forma que os atendentes na linha de frente pudessem fazer o que se esperava deles.
Mas ao meio-dia era o horário de almoço.
Eles costumavam almoçar num dos tantos restaurantes por quilo que existiam no centro de Porto Alegre, na General Câmara, não muito longe da Rua da Praia, onde trabalhavam. Apelidaram o estabelecimento de “Sorvetinho”, pois tinha como diferencial oferecer como opção de sobremesa o gelado, materializado através de uma máquina de sorvete italiano. Esse diferencial foi se desvanecendo à medida em que outros restaurantes de bufê a quilo foram disponibilizando esse tipo de máquina aos clientes. O restaurante tinha dois amplos salões, com dezenas de mesas, de forma que não costumava ser difícil encontrar uma dessas mesas vaga. Um longo corredor ligava os dois salões, e era o local onde ficava instalado o bufê propriamente dito.
Ao meio-dia era horário de almoço. E no horário de almoço, as conversas podiam render.
Naquele dia, depois que todos haviam se servido, e estavam sentado, o João das Letras lançou o desafio.
- Ontem meu filho me mostrou a pergunta: “quantos personagens de Dragon Ball são necessários para trocar uma lâmpada?”
Diante do silêncio, ele mesmo respondeu:
- Simples. Um... Mas vai demorar pelo menos uns seis episódios...
Quem tinha visto o desenho animado Dragon Ball riu.
Depois o Mateus contou uma piadinha, mais ou menos no mesmo assunto.
-  A mulher saiu de casa e disse que ia fazer compras. Mandou o marido arrumar a casa, e cuidar bem do filho. O marido acatou as demandas e concordou em fazer tudo que ela havia mandado. O filho achou aquilo meio estranho e perguntou para o pai: “Pai, por que você faz tudo que a mamãe manda?”. O pai respondeu “É uma longa história filho, mas basicamente foi o seguinte: quando eu soube que você ia nascer, eu disse para ela que eu iria fazer qualquer coisa que ela quisesse, desde que ela deixasse que eu escolhesse o teu nome.” O filho continuou questionando o pai: “E valeu a pena, pai?” . O pai respondeu: “Claro que valeu Goku!”
Todos na mesa riram. E quem menos riu, abriu um largo sorriso.
E assim ia a conversa, de desenhos animados (ou animes, ou animês, como talvez fossem chamadas as animações japonesas), de histórias em quadrinhos, de videogames, de cartuns...
E assim chegaram ao Laerte.
Laerte é um cartunista que publica tirinhas em jornais de circulação nacional. E tem causado certo rebuliço por ter começado a se vestir com indumentária feminina, de uns tempos para cá.
- Pois é, e tem o Laerte. - disse disse o João das Letras.
Era uma mesa de altos assuntos culturais...
- O que tem o Laerte? - perguntou o João da Administração.
- De uns tempos para cá, começou a se vestir de mulher... - voltou o João das Letras.
- Virou travesti. - Falou o Carlo.
- Acho que eu ouvi falar em algo como “cross dresser” - tentou o João das Letras.
- Um travesti. - Reafirmou o Voltaire.
- Tá. Um travesti. - concordou o João das Letras.
- Mas um cara assim tem que gostar de fio-terra. - Disse o Carlo.
- Mas o que tem de errado gostar de fio-terra? - Questionou o João das Letras.
- Pronto! - disse o Voltaire, com um sorriso malicioso nos lábios... - Era só o que faltava. Um apologista do fio-terra na mesa.
- Sim, mas o que o camarada faz com a mulher dele pode ser ofensivo para nós? - O João das Letras ainda tentou emendar.
- Ah não! Se se veste de mulher, deve fazer fio-terra, e se gosta de fio-terra, alguma coisa errada tem! - Completou o Carlo.
Um certo silêncio, entre cúmplice, sarcástico e constrangido tomou conta da mesa...
Mas foi só por um minuto.
Logo outro assunto retomou a conversa.
Dos cinco à mesa, quatro eram casados. Provavelmente quando faziam sexo com suas respectivas esposas o faziam da forma mais convencional possível. Provavelmente não alimentavam nenhuma fantasia perversa....
Bom. Tinha o Mateus. Mateus é o mais jovem, e único solteiro. Talvez, no seu interior, ele ainda possa ser um pervertido. Talvez, por solteiro, possa desfrutar de alguma fantasia pervertida. Mas, de qualquer maneira, ele nunca comentou nada com ninguém.
A refeição chega ao fim. O tempo acaba. A conversa se dispersa. É hora de pagar, e voltar para a autarquia. Pegar a General Câmara em direção à Rua da Praia.
Voltar à autarquia para Mateus continuar a customizar softwares, Carlo a manter a rede funcionando, um João a contabilizar, e o outro também. E Voltaire a mandar. Afinal ele é o chefe, ou subchefe, mas tanto faz se o cargo é chefe ou subchefe, pois é ele que manda...
Afinal, a autarquia é um dos tantos lugares nos quais as ordens do Governador, expressas ao Secretário, acabam se transformando em algo que vai afetar aos cidadãos. Assim, esses homens se sentiam cheios de responsabilidades junto à cidadania, mas por outro lado se sentiam aliviados por trabalharem em áreas de suporte. Áreas meio, onde não tinham que encarar o respeitável público de frente.



16/04/2012, 19/04/2012, 26/04/2012.

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