Um comentário sobre “O Jogo da Amarelinha”



O “Jogo da Amarelinha” é um romance que foi escrito pelo argentino Júlio Cortázar, no início da década de 1960. Trata da história de Horácio Oliveira e sua vida, parte em Paris, como expatriado, parte em Buenos Aires. É um livro em que é possível analisar tanto conteúdo quanto forma, e ainda pensar como o autor junta isso no decorrer da obra através de um personagem chamado Morelli.

Pensando em conteúdo: como foi dito, o personagem principal é Horácio Oliveira, argentino. Parte de sua história se passa em Paris, parte após seu regresso a Buenos Aires. Em torno dele gravitam os demais personagens, sendo que os mais importantes são a Maga, ou Lucía, em Paris; e Manolo Traveler, em Buenos Aires.

Em Paris há sua convivência com a Maga e, em menor grau, com Pola, ambas suas amantes. E há “o Clube”, uma comunidade de pessoas, em sua maioria expatriados como Horácio. Uma comunidade que se reúne para ouvir jazz, fumar e beber vodca barata, discutir filosofia ou o sentido da vida, se é que a vida tem algum sentido para eles, e literatura. São pessoas adultas. Em mais de uma parte do livro Horácio nos informa que tem mais de quarenta anos, de onde pode ser deduzido que os demais membros do Clube tenham idade aproximada. De maneira geral são pessoas inteligentes, instruídas e sofisticadas. E fracassadas. Vivendo naquela Paris do início da década de 1950, os membros do Clube, ou dependem economicamente de parentes, ou não obtém sucesso em suas carreiras profissionais. Alguns deles aspiram a ser artistas.

Em Buenos Aires há a amizade de Horácio com Manolo Traveler, e com a esposa deste, Talita ou Atalia. Há também o relacionamento com uma namorada, a quem ele não ama, mas que lhe é devota. E em Buenos Aires obtém trabalhos precários: vendedor de tecidos de porta em porta, auxiliar em um circo, auxiliar em uma clínica psiquiátrica.

Horácio gosta de se ver como um intelectual, mas não “produz” nada, nenhuma obra, exceto as discussões que tem com os membros do Clube, em Paris, ou com Traveler em Buenos Aires. Horácio é um homem paralisado pela metafísica, a tal ponto que consegue questionar em diálogos com seus interlocutores, se o diálogo está mesmo acontecendo. Esta busca por significados, para além daquilo que os sentidos podem perceber o impedem inclusive de desfrutar o amor das mulheres com quem ele se envolve, e de manifestar solidariedade e compaixão quando isso fosse necessário. Tal paralisia metafísica pode interromper a comunicação, e levar à loucura.

E há a questão da forma. O livro “O Jogo da Amarelinha” tem 155 capítulos, e o autor propõe duas maneiras de ler o livro. A mais simples é começar pelo capítulo 1 e ler, de maneira linear e direta, em sequência, até o capítulo 56. A obra estaria lida e o leitor saberia do que se trata.

A outra forma é seguindo a proposta do autor mapeada no início do livro, para ler quase todos os 155 capítulos. O mapa do autor indica que nesse modo se comece a leitura pelo capítulo 73, depois se passe ao capítulo 1, depois ao 2, e os demais, até terminar no capítulo 131. Nesse modo, ao final de cada capítulo há a indicação de qual capítulo deve ser lido em seguida.

Eu apontaria que é possível ler começando pelo capítulo 1, e, continuando sequencialmente, ir até o 155. De qualquer maneira, haverá informações complementares à leitura sumária, dos capítulos 1 a 56, e alguns capítulos que parecerão colagens aleatórias.

Há uma espécie de discussão desta ligação entre forma e conteúdo dentro do livro na figura de um personagem chamado Morelli.

Morelli, no livro, é um autor e teórico de literatura, e espécie de ídolo para os membros do Clube, e a certa altura da trama escreve que é necessário tirar o leitor de seu conforto e sua passividade, conforto e passividade estes induzidos por obras lineares e simples demais. Talvez seja um maneira de Cortázar se justificar, ou se explicar, pelo embaralhamento de capítulos feito em “O Jogo da Amarelinha”.

Após ter lido o livro em todas estas formas descritas acima, devo dizer que as achei desnecessárias. O potencial leitor desfrutaria mais do livro sem o malabarismo que acabou lhe sendo imposto, e contra as alegações do personagem Morelli. Por outro lado temos que conceder que uma ordenação linear do livro tornaria dispensáveis os questionamentos de Morelli, e potencialmente cortaria parte do conteúdo do livro. Mas nesse caso Cortázar poderia inventar outras discussões para os membros do Clube.
E há ainda as experimentações com a linguagem, como no capítulo 68, onde podemos encontrar algo como:
No mesmo instante em que ele lhe amalava o noema, ela lhe dava com o clêmiso e ambos caíam em hidromurias, em abanios selvagens, em sústalos exasperantes. De cada vez que procurava relamar as incopelusas, ele emaranhava-se num grimado queixoso e tinha de envulsionar-se de cara para o nóvalo, sentindo como se, pouco a pouco, as arnilhas se espechunassem, se fossem apeltronando, reduplimindo, até ficar estendido como o trimalciato de ergomanina no qual se tivesse deixado cair umas filulas de cariacôncia. E, apesar disso, aquilo era apenas o princípio, pois, em dado momento, ela tordulava-se os hurgálios, consentindo que ele aproximasse suavemente os seus orfelunios. Logo que se entreplumavam, algo como um ulucórdio os encrestoriava, os extrajustava e paramovia, dando-se, de repente, o clinón, a esterfurosa convulcante das mátricas, a jadeolante embocapluvia do órgumio, os esprêmios do merpasmo numa sobremítica agopausa. Evohé! Evohé! Volposados na crista do murélio, sentiam-se balparamar, e tudo se resolvirava num profundo pínice, em niolamas argutendidas gasas, em carínias quase cruéis que os ordopenavam até o limite das gunfias..”i

Ou o capítulo 69 sobre a linguagem nativa latinoamericana:
Ingrata surpreza foi ler no “Ortográfiko” a notisia de aver falesido em San Luis Potozi, no dia 1 de marso último, o tenente koronel (promovido a koronel para ser apozentado) Adolfo Abila Sanhes. Foi uma surpreza porkê não tivéramos notisia de kê se axasse de kama. Além do mais, já avia tempo ke o tínhamos katalogado entre nossos amigos os suisidas i, numa okasião, “Renovigo” referiuse a sertos sintomas observados nele. Todavia, susede ke Abilia Sanhes não eskolieu o revólver komo o eskritor antiklerikal Giyermo Delora, nem a korda komo o esperantista fransês Eugène Lanti.”ii

Eu posso discutir tudo isso, contudo a obra está aí do jeito que está. Para além dela, há discussão e especulação.

Eu já havia lido resumos e comentários bastante laudatórios a respeito de “O Jogo da Amarelinha”, como a obra-prima de Júlio Cortázar. É um livro muito bom, na verdade poderíamos até dizer que são dois livros. Um ambientado em Paris, outro em Buenos Aires. E a parte da história que acontece em Paris é melhor que a que acontece em Buenos Aires. É um livro muito bom, mas me parece inferior aos livros de contos que li dele anteriormente: “Todos os Fogos o Fogo” e, principalmente, “As Armas Secretas”.




17/10/2012.




CORTÁZAR, Júlio. O Jogo da Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Obra original de 1964.




iCopiado de um “tumblr” dedicado ao livro “O Jogo da Amarelinha” - <http://amarelinha.tumblr.com/page/2>

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Poemas de Abbas Kiarostami na Piauí de Junho/2018

Sessão de Autógrafos - A Voz dos Novos Tempos

Feliz aniversário, Avelina!