Um domingo de primavera

Um domingo de primavera



Depois de acordar tarde naquele domingo, João se levantou, se lavou, comeu e pensou em ir pegar sua mulher, cujo nome curiosamente era Joana, como o nome da mãe dela, que estava na casa de sua sogra.
Apesar de parecer, isso de Joana, na casa da sogra não é piada. Apenas aconteceu. E coube de encaixar nesse aforismos bobo, "casa da sogra", "casa da mãe Joana". Coincidências engraçadinhas, nada além disso.
Joana tinha ido ficar com sua mãe, por que ela não tinha se sentido bem na sexta-feira. Levou as crianças porque assim elas mudariam de ar um pouquinho.
A casa era confortável, três quartos, e fazia não muito tempo que o sogro tinha acabado de cumprir com suas obrigações com esta dimensão. Assim fazia alguns meses que dona Joana vinha tentando se acostumar à condição de viúva.
Talvez por isso não tivesse se sentido bem naquela semana.
Vera, a irmã mais nova de Joana estava viajando por aqueles dias, e não pôde acudir a mãe. Sobrou para a Joana filha.
João e Joana eram um casal relativamente feliz, tão feliz quanto consegue ser um casal de classe média baixa, ou, talvez, classe média média. Provavelmente mais classe média baixa que classe média média. João pensava consigo mesmo que se fossem classe média média formariam uma fammília de propaganda de margarina. Um pai, uma mãe, e um menino e uma menina como filhos. Não exatamente uma família de propaganda de margarina porque nas propagandas as famílias eram contratadas de modelos profissionais. Modelos profissionais tendem a ser mais bonitos e simpáticos que a gente costuma ser. Previdencialmente não batizaram as crianças com os mesmos nomes. Ela não tinha gostado quando na infância costumavam chamá-la de "Joaninha". Nem ele na infância gostava de ser chamado de "Joãozinho", embora ele não achasse ruim agora, quando em momentos mais íntimos ela o chamava dessa forma.
Dona Joana morava no Partenon. João e Joana moravam na Zona Norte, próximos da Assis Brasil, e não muito longe do Triângulo.
Tanto João, quanto Joana eram funcionários públicos. Tinham recebido reajustes recentemente, e, com as facilidades do crédito destes dias resolveram comprar um automóvel zero quilômetro. O primeiro zero quilômetro que puderam comprar desde que casaram. Um carro simples, desses que a imprensa especializada costuma chamar de "popular", mas que é mais popular pela falta de componentes e potência do motor que pelo preço. Como ela tinha rinite alérgica, resolveram economizar na compra e não colocaram ar condicionado no carro. Por segurança, o carro era segurado.
Depois de comer, no início da tarde, João tomou a iniciativa de ir pegar a mulher. Já havia telefonado e confirmado que dona Joana estava melhor.
O trajeto usual para ir da Zona Norte passava por Assis Brasil, João Wallig, Nilo Peçanha, Perimetral e Bento Gonçalves. Na maioria das vezes em que foram visitar a sogra, João dirigia por esse caminho. A Assis Brasil com seu turbilhão de trânsito, a arborizada João Wallig, a mais ou menos chique Nilo Peçanha, e a Perimetral com suas dezenas de sinaleiras. E havia a esquina da Perimetral com a Ipiranga. João sempre se impressionava com aquela esquina em que a Perimetral se "abria", se espalhava. Era como um grande largo, por conta dos desvios feitos ali. "Alças" que desviavam o tráfego para a Ipiranga ou para a própria Perimetral, visando racionalizar o tráfego. E daquele largo, João sempre achava que se tinha uma visão privilegiada do Morro da Polícia. Embora não tivesse certeza a respeito do nome correto daquele morro, João sempre se referia a ele como "Morro da Polícia". Alguns o chamam de "Morro da Embratel", pois ali ficava (fica ainda?) uma antena retransmissora da antiga estatal Empresa Brasileira de Telecomunicações, a Embratel. O morro dominava o horizonte ali.
Apesar da paisagem deslumbrante para João, havia um inconveniente na esquina da Perimetral com a Ipiranga. Sempre que ele parava naquela esquina, havia ou pedintes, ou vendedores de frutas ou flores, ou ambas as coisas. Ou ainda panfleteiros, mas normalmente João se incomodava menos com os panfleteiros.
A primavera de Porto Alegre alterna dias de calor veranil, com dias de temperatura amena, quase outonal. Naquele dia, João enfrentava um calor veranil. Com as janelas abertas, João suava no carrinho popular, enquanto se dirigia à casa de sua sogra. Em dias como esse costumava maldizer a rinite de sua mulher e a economia feita na compra do carro. Mas o que estava feito, estava feito, e pagavam com certa dificuldade a prestação do automóvel. Então era assim.
Naquele domingo, tendo pensado nos inconvenientes da esquina da Perimetral com a Ipiranga, João resolveu fazer um caminho alternativo. Em vez de pegar a Perimetral, seguiu pela Nilo até a Ijuí. Entrou por esta e a subiu em direção à Protásio Alves. Atravessou a Protásio Alves e começou a descer a Barão do Amazonas. Chegaria na Bento Gonçalves de qualquer maneira.
Mas a esquina da Ipiranga não deixaria de lhe trazer inconvenientes. Quando chegou ali pela Barão da Amazonas, encontrou um mendigo. Pedindo dinheiro como muitas vezes fazem os mendigos.
- Um trocado aí, tio! Olha só tô com uma ferida na perna, e não tenho dinheiro prá comprá remédio.
João logo tratou de pegar algumas moedas que tinha no bolso.
- Tá aqui. Não. Não precisa me mostrar a tua ferida. Eu acredito em ti...
O mendigo insistiu em mostrar uma perna com ferimentos entre carne viva e infecção superficial. João pensou se algum dia deixaria de encontrar gente como aquele mendigo pedindo dinheiro nas sinaleiras de Porto Alegre. Miserável, maltrapilho, e precisando de cuidados médicos. E cheirando mal. Mas como poderia o mendigo cuidar de higiene pessoal se morava na rua?
A sinaleira abriu. O mendigo e seu mau cheiro ficaram para trás. O calor continuou.
*******
Afinal cheguei à casa de minha sogra. A velha de fato já estava melhor.
- Uma bobagenzinha à toa. - Disse ela a respeito de seu mal estar durante a semana.
Talvez a simples presença da filha e dos netos tivesse o dom da cura.
Depois de algum tempo, nos preparamos para partir.
Como estávamos com as crianças, em lugar de ir para casa, resolvemos ir a um shopping na zona sul da cidade. Já estávamos na metade do caminho mesmo. Além disso, as crianças vez por outra perguntavam quando iríamos àquele shopping de novo. As crianças o acham tão legal! Eu costumo achar shoppings tão tediosos! Mas, enfim, como diz a propaganda de analgésico, "não basta ser pai, tem que participar". Se as crianças queriam ir ao shopping, se a mulher consentia de ir ao shopping, quem seria eu para discordar sozinho? Vamos lá.
*******
Hora de retormar a Perimetral. Não em direção ao lar, mas no sentido oposto, para o shopping. Aparício Borges, Teresópolis, Nonoai, Campos Velho...
Tudo estava mais ou menos tranquilo então. Porto Alegre passou a ter tantos carros circulando, que mesmo aos domingos havia muitos deles na Perimetral. Que naquele trecho parecia demasiado estreita, com suas duas faixas de rolamento em cada sentido. Um pouco mais devagar do que o desejado. O passeio familiar continuava.
Iam descendo a Campos Velho em direção à Icaraí, ao shopping, que já estava próximo. Eles eram praticamente os últimos daquele pequeno fluxo de carros que descia da Nonoai em direção à Icaraí. Justamente na esquina da Icaraí, a luz da sinaleira passou para amarela. Os carros da frente decidiram acelerar. João decidiu parar.
Parou. O carro deles por alguns segundos foi praticamente o único naquela esquina, a aguardar o sinal abrir novamente.
João não deu muita bola quando um vendedor de flores se aproximou com um ramalhete na mão. Achava que era inescapável ser importunado por pedintes ou vendedores nas esquinas movimentadas do trânsito de Porto Alegre.
Acontece que aquela importunidade era diferente. O ramalhete escondia um revólver.
- Desce aí, malandro. Eu sou quero o carro. Desce! Desce! A senhora também, madame! - O homem gritou.
João teve uma reação reflexiva. Tentou arrancar com o carro.
O homem disparou duas vezes. Uma das balas travou na coluna do automóvel. A outra na cabeça de João. Joana gritou! As crianças começaram a tremer e chorar.
O carro ainda avançou até o canteiro central da Icaraí. João caído por cima do volante.
O "vendedor de flores" correu em direção à Wenceslau Escobar.
A Brigada foi chamada mas não encontrou o assassino. O SAMU foi chamado mas nada pôde ser feito.
Aquele quente domingo de primavera acabara mal. Muito mal.


18, 19/10/2012.




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