Viagem Sentimental a São Borja


Viagem Sentimental a São Borja



São Borja fica a mais ou menos 600 quilômetros de Porto Alegre. É mais longe que Florianópolis, a capital do estado vizinho, por exemplo. Fica às margens do Rio Uruguai, fronteira do Brasil com a Argentina.


Em 1984 eu quis ir a São Borja.


Vivíamos os estertores da ditadura no Brasil, e eu estava pelo meio de minha adolescência, e fiquei bastante impressionado com o documentário "Jango", de Sílvio Tendler, que passou nos cinemas naquela época. Na minha cabeça, eu devo ter visto este filme no antigo Cinema Scala, que ficava na Rua da Praia. Ou talvez no Cacique que era uma sala que ficava ao lado. Tempos dos cinemas de rua.


O documentário tentava ser uma síntese do que havia sido o governo de João Goulart, o Jango do título, como ele era conhecido. Como eu disse, vivíamos os estertores do regime militar, e o documentário era bastante favorável à figura de Jango. Foi feito a partir de filmes e fotos de época, e de depoimentos.


Lembro-me que ao sair do filme, eu e alguns colegas cogitamos de ir à cidade de São Borja, cidade que abrigava o túmulo do presidente deposto por uma articulação civil-militar que impediu os brasileiros de elegerem seu presidente por 25 anos.


De quebra, São Borja também era a cidade que alojava os restos mortais de Getúlio Vargas. O presidente que havia legado ao país os primeiros direitos trabalhistas para os trabalhadores urbanos. E que se suicidou diante da perspectiva de sofrer um golpe civil-militar, em agosto de 1954.


É, São Borja é conhecida como a “Cidade dos Dois Presidentes”.


Aquele momento passou.


O desejo de conhecer a cidade permaneceu incubado.


Houve uma vaga nova oportunidade na segunda metade da primeira década do século XXI na possibilidade de uma excursão de estudantes do curso de História para lá. Sendo um estudante temporão, com família e trabalho, deixei a nova oportunidade passar.


Pois em março passado, finalmente pude me pôr a caminho para conhecer a cidade dos dois presidentes.


Férias. E férias sem muita pretensão. Viajar pelo interior do Rio Grande do Sul.
E assim lá fomos nós a caminho de São Borja, no início de março.


É uma viagem longa. Como eu disse, quase 600 quilômetros a partir de Porto Alegre, cruzando o Rio Grande do Sul no sentido leste-oeste, mais ou menos no caminho do sol. Dependendo da pressa e da vontade de correr riscos em nossas estradas, a viagem pode levar de 6 a 9 horas. Razão pela qual não a fizemos toda de uma vez.


Tendo saído tarde de casa, fizemos uma parada estratégica na cidade de Santa Cruz do Sul, com sua belíssima catedral de estilo neogótico.


Após a pausa em Santa Cruz a viagem seguiu para oeste. Passando pela cidade Santa Maria, e depois por Santiago do Boqueirão.


Entre Santiago e São Borja há uns cerros, que eu não imaginava que existiam. Acrescentaram uma pequena dose de emoção à viagem, com o sobe e desce, e curva para a direita e curva para a esquerda.


E por fim, lá onde termina a BR287, estava um dos acessos à cidade de São Borja.


São Borja não chega a ser uma cidade que tenha muitas belezas naturais a explorar, mas tem os seus pontos.


A começar que foi o primeiro dos chamados Sete Povos das Missões. Ou seja, a cidade foi fundada por jesuítas espanhóis no final do século XVII, na segunda tentativa de evangelizar e aldear os povos indígenas da margem oriental do Rio Uruguai, homenageando um dos primeiros líderes dos jesuítas, São Francisco de Bórgia.


A catedral atual, que lembra vagamente uma nave espacial, foi erguida no mesmo terreno da primeira matriz jesuítica do século XVII.


Pelas idas e vindas territoriais entre os impérios coloniais espanhol e português, a cidade acabou ficando para o Império Português, e por herança, para o Brasil.


Além de terra dos presidentes, e início dos povos missioneiros, São Borja foi local de nascimento de um líder republicano do final do século XIX. o Coronel Aparício Mariense da Silva. Na praça principal da cidade, muito propriamente chamada "15 de Novembro", há uma estátua deste vulto da república. Líder republicano, após a proclamação da república, ele foi intendente (prefeito) de São Borja por dois mandatos.


Assim, a gente vai descobrindo os encantos da cidade….


Uma cidade basicamente plana. Suas poucas subidas e descidas são suaves.


Ficamos hospedados num hotel muito adequadamente situado à Avenida Presidente Vargas, a poucas quadras da Praça XV de Novembro.


Nessa mesma avenida ficam o Museu de João Goulart, abrigado numa casa que pertenceu à família Goulart. E também o Museu de Getúlio Vargas.


O Museu de João Goulart tem um acervo modesto. Avalio assim pensando no tamanho de tal figura para a cidade: um pequeno mobiliário que herdado da família, alguns balcões com vitrines expondo publicações da época do Governo João Goulart, alguns objetos que pertenceram ao ex-presidente. E poucas lembrancinhas à venda para os eventuais curiosos que por ali chegassem.


E o Museu de Getúlio Vargas estava fechado para reformas. O acervo estava guardado em um quartel da cidade. Não vimos.


São Borja, desde 1997 tem a ponte internacional que a liga à cidade de Santo Tomé na Argentina. São 1.400 metros. Mas nós não fomos ao território argentino, e não passamos pela ponte.


Como eu disse antes, São Borja fica às margens do Rio Uruguai. Um rio longo, mais de 1.700 quilômetros, o Uruguai separa o Rio Grande do Sul da Argentina, e separa a Argentina do país Uruguai mais ao sul. O rio Uruguai é cantado em verso e prosa no Rio Grande do Sul, um estado que, como todo o Brasil, tem todo um passado agropastoril e um presente urbano, mas gosta de celebrar o saudosismo desses tempos em que a maioria da população vivia no campo.


Nós precisávamos ir ver este marco do Rio Grande do Sul. Tão cantado, tão falado. E fomos. A margem do Rio Uruguai fica a pouco mais de cinco quilômetros do centro de São Borja. Uma distância bem razoável.


No caminho passamos por uma lancha da Polícia Federal. Sabe como é, área de fronteira, área de contrabando, e, eventualmente, área de tráfico de drogas.


Quando lá chegamos, pudemos constatar que aquela área, próxima do rio, é uma área de lazer para os são-borjenses. Um local com ampla área de estacionamento, e cheia de barracas de comes e bebes. No dia e horário que fomos tudo estava fechado (era uma tarde de dia útil), mas pudemos imaginar o agito que deve ser aquilo nos finais de semana.


E ali estava o rio. Na nossa frente. Sua margem de terra escura e pedrinhas, e  areia. Sua água escura, que parecia quase parada, sem correnteza. Seus talvez 1.000 metros de largura, e, na outra margem, a Argentina com seus barrancos e a vegetação ciliar. Ali estava o rio que demorou meia vida para que eu pudesse ver e molhar os calçados. O rio que por um tempo pertenceu em ambas às margens ao Reino de Castela. O rio que, por fim, é a fronteira entre os lugares onde se fala português e espanhol. Bom turista, tirei umas poucas fotos do rio, enquanto minha mulher e meu filho ficavam disputando quem atirava pedras mais longe. De preferência pedras chatas, que podiam picar na água para ir mais longe. Dia de sol. Dia quente de março. Foi como conheci o Rio Uruguai.


E no outro dia era dia de visitar o cemitério da cidade. Cemitério este onde deveriam estar os restos mortais dos presidentes.


O cemitério de São Borja fica num canto meio ermo da cidade. O jazigo da família Vargas fica logo na entrada do cemitério. Já o da família Goulart fica mais à direita de quem entra.


No jazigo da família Goulart estava enterrado o corpo do ex-presidente. E o de sua irmã, Dona Neusa Brizola, e o de Leonel Brizola, falecido em 2004. E o de Neusinha Brizola, filha do político que fez algum sucesso como cantora nos anos 1980. Foi surpreendente se dar conta que tanta gente conhecida estivesse enterrada naquele jazigo.


Já os restos mortais do presidente Getúlio Vargas já não descansavam mais no jazigo da família Vargas naquele cemitério. Haviam sido transferidos para um mausoléu-monumento que estava sendo construído em plena Praça XV de Novembro. Em março este monumento ainda estava por ser concluído.


Bustos dos dois ex-presidentes adornam a prefeitura de São Borja, cujo prédio se chama Presidente João Goulart.


E foi esta minha visita à cidade.


Não sei se algum dia voltarei a visitá-la. Eu gostaria.


Mas esta visita preencheu uma expectativa de 30 anos de espera.


Em 1984 não imaginei que demoraria tanto.



19/05/2014.



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