Diário - leituras - A Invenção da Terra de Israel


Diário - leituras - A Invenção da Terra de Israel


Eu havia ouvido falar sobre Shlomo Sand quando foi publicado seu livro anterior no Brasil, o livro se chama "A Invenção do Povo Judeu". Na época eu li algumas resenhas e comentários sobre o livro.


Pelo que pude ler, "A Invenção do Povo Judeu" apontava para outras origens para os judeus do leste europeu, que em grande parte migraram para a Palestina, e vieram a constituir o moderno Estado de Israel.


A narrativa consagrada dizia que o povo judeu viveu na Palestina desde Moisés até ser expulso de lá pelos romanos no início da era cristã, após uma série de revoltas emancipacionistas dos judeus contra os romanos.


Segundo o que li nos comentários, Sand dizia naquele livro que na verdade os romanos não expulsaram toda a população judia da Palestina no início da era cristã, e muitos dos judeus que por ali foram ficando acabaram por se converter ao islamismo quando do domínio árabe, e posteriormente turco sobre a região. Depois, ele conclui que os judeus da Europa Oriental não seriam descendentes dos exilados no início da era cristã, mas seriam conversos de proselitismo do judaísmo medieval. Inclusive do extinto reino Cazar, que existiu entre os séculos VII e X.


Se aquele livro falava do "povo", este fala do "território". Como diz, a Terra de Israel.


Eu fui fisgado pelo livro por conta do prólogo. No caso, Shlomo Sand relembra sua participação no exército israelense durante a Guerra dos Seis Dias. Shlomo Sand nasceu na Áustria em 1946, mas quando ele tinha dois anos seus pais migraram para Israel, de forma que ele tinha vivido sua infância e adolescência na cidade de Jaffa, no litoral do Mediterrâneo. O pelotão em que ele servia lutava na frente de batalha da cidade velha de Jerusalém, então dominada pela Jordânia. Para o jovem Shlomo Sand, criado em Jaffa, a cidade velha era território da Jordânia, e portanto, ele ficava pensando consigo mesmo, e comentando com seus camaradas de armas, que era a primeira vez na vida dele que ele iria para o estrangeiro. Seus colegas questionaram sobre o que ele estava falando. Para os camaradas de armas de Shlomo, a cidade velha sempre fora parte da “Terra de Israel”. Eles apenas estavam retomando o que sempre fora parte de sua terra ancentral.


Aquilo marcou o pensamento de Shlomo Sand, de modo que ele resolveu fazer uma longa pesquisa sobre esta história da Terra de Israel. Para ele também uma tradição inventada, na linha das tradições inventadas de Eric Hobsbawn, e das comunidades inventadas de Benedict Anderson.


Bom, se fui fisgado pelo prólogo, logo cai na real.


O livro é uma monografia que traz um inventário da “Terra Santa”, desde seus primórdios.
Não faltam mesmo as páginas de discussão teórica e metodológica sobre os conceitos de território, estado, nação, na tradição dos historiadores acadêmicos.


E então começa a história do judaísmo com a Palestina, ou Canaã como dito no Velho Testamento. Shlomo começa por desacreditar na narrativa de Deuteronômio e principalmente Josué, que narram uma autêntica limpeza étnica da região, sob as ordens de Deus, onde as populações encontradas pelos hebreus primitivos teriam sido em grande parte massacradas.
A explicação alternativa de Sand é que os livros da Torá e de Josué seriam muito mais recentes do que o quer a tradição rabínica e cristã propõem, sendo sedimentados após o retorno da Babilônia, oferecendo uma base para hebreus que voltavam da Mesopotâmia - Babilônia, para a Palestina, conforme as narrativas de Esdras e Neemias.


Sand explora a passagem de “Canaã” para a Judeia e Israel. Depois fala da “diáspora” judaica, após a expulsão dos romanos. Para Sand, diáspora fica entre aspas porque, segundo ele, ela nunca existiu. Se Jerusalém deixou de ser uma cidade judaica após a revolta de Bar Kochba no século II, muitos judeus permaneceram na região, que começou a ser nomeada de Palestina pelos romanos. E segundo ele, o que aconteceu é que boa parte da população da região acabou se islamizando, quando da expansão muçulmana a partir do século VII.


Shlomo Sand também acompanha o pensamento judeu na Europa, e demonstra como durante a medievalidade cristã, os pensadores judeus viam a Terra Santa e Jerusalém mais como uma aspiração espiritual, uma fonte de inspiração para a religião que como um lugar para onde os judeus deveriam se mudar.


Este tipo de pensamento permaneceu como o mais comum entre os judeus da Europa por toda a Idade Média, e chegou ao Renascimento e ao Iluminismo. Todos esse momentos culturais influenciaram o judaísmo europeu e trouxeram mudanças e reformas, mas ainda assim, os judeus continuavam vivendo entre os cristãos na Europa.


O quadro só vai mudar com o advento da Revolução Francesa, e posteriormente com os nacionalismos que surgiriam entre os povos europeus. Este novo movimento trouxe como contraponto a xenofobia, e os judeus passaram a ser considerados os diferentes, portanto o “inimigo” para justificar a necessidade das diversas “nações”, como russos, polacos, alemães, etc. Ainda assim, no quadro de xenofobia que foi se demonstrando, mais ao leste da Europa (apesar do “affair” Dreyfuss na França), muitos dos judeus que fugiam do leste da Europa, migraram para a Inglaterra e os Estados Unidos, e mesmo a Argentina. Até hoje os Estados Unidos têm a maior população judaica do mundo.


É só quando Inglaterra e Estados Unidos começam a impor restrições à imigração, que a migração judaica para a Palestina recebe um incremento. Segundo Sand, dentro de um quadro de colonialismo. Ou seja, o que Inglaterra e França faziam na Ásia e na África, os judeus que começaram a imigrar para a Palestina fizeram com os árabes nativos da Palestina, embora sem um estado nacional colonialista por trás, mas com a base da sociedade sionista. Os judeus pioneiros não se misturavam com a população local, e imaginava aquela região como uma terra “sem povo”. Com a ajuda da sociedade sionista muita terra foi comprada das autoridades otomanas, que então eram os regentes da região. Mas à medida que foi florescendo o sentimento de identidade nacional mesmo entre os árabes da região, os conflitos começaram a aflorar.


A Primeira Guerra e o  posterior domínio britânico sobre a região foram fundamentais para que a colonização da terra pelos judeus pudesse continuar.


Quando o Estado de Israel foi declarado, a população judaica da Palestina era de menos da metade da população árabe. Não obstante, após vencer a sua guerra de independência, Israel ficou com um território maior que aquele a princípio designado pela partilha da região estabelecida pela nascente ONU. Durante e logo após a guerra de independência, Israel promoveu uma verdadeira limpeza étnica da população árabe dentro de seu território. Ele fala em mais de 400 aldeias arrasadas. A maioria destas populações foi expulsa para as regiões que hoje são a Cisjordânia e Faixa de Gaza. Muitos campos de refugiados surgiram então nos países árabes vizinhos. Esta expulsão se deu pelo terror psicológico na maior parte.


Infelizmente, em algumas aldeias, parte da população civil foi massacrada por grupos milicianos que posteriormente iriam compor as forças armadas de Israel.


As populações árabes que puderam ficar dentro do novo território de Israel viveram sob governo militar até 1966, ou seja, por cerca de 18 anos.


Shlomo Sand comenta que as autoridades do novo estado nunca se preocuparam muito em definir quais seriam as fronteiras reais do Estado de Israel. Os pioneiros sonhavam inclusive que a margem oriental do Jordão e todo o seu vale, do Lago Genezaré até o Mar Morto. Mas em 1948, Israel possuía um território muito menor que isso, e conseguiu manter uma população majoritariamente homogênea, no sentido que a maioria da população desse território se definia como judia.


E aqui podemos voltar para o prólogo e para a Guerra dos Seis Dias. Sand diz que a ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza se tornou uma armadilha para Israel. De repente Israel domina sobre um território que imagina que faz parte de sua terra ancestral, mas que possui uma população que não é judia. E esta população não poderia ser expulsa novamente como acontecera em 1948.


E chegamos aos dias de hoje. Israel sabe que não pode manter sob seu domínio com espoliação de direitos civis a população árabe palestina. Mas sua liderança não consegue se desapegar da terra que pensa que é a terra de seus ancestrais.
O livro termina com um estudo de caso, exemplificando como a criação do Estado de Israel foi de fato uma tragédia para os árabes que habitavam a região. Ele conta a tragédia da aldeia de Al-Sheikh Muwannis. Uma aldeia que ficava exatamente onde hoje está o campus da Universidade de Tel Aviv, a instituição em que Shlomo Sand e professor. Segundo ele, a aldeia foi citada nos relatórios da expedição de Napoleão ao Oriente Médio, no finalzinho do século XVIII.


A população árabe sempre procurou viver em paz com os judeus de Tel Aviv e Jaffa no início do século XX. Essa população não lutou contra as milícias judias durante a guerra de 1948.
Não adiantou. A população sofreu terror psicológico, e se viu constrangida a abandonar a terra.


Toda a memória do lugar que foi Al-Sheikh Muwannis foi apagada. Além do campus da Universidade de Tel Aviv, há alguns museus próximos, cultivadores da memória judaica.


É um bom livro, apesar de seus momentos maçantes.


Sobre Shlomo Sand, ele demonstra ser agnóstico. Talvez ele fosse definido como um judeu israelense antissemita, por parte de alguma autoridade do Estado de Israel.


SAND, Shlomo. A Invenção da Terra de Israel. São Paulo: Benvirá, 2014.


11/11/2014, 22/06/2015.

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